sábado, 2 de maio de 2009

Pêssegos Maduros

Estava só. Sua única visão era a de um fragmento de dia ensolarado que se exibia mais além, pra lá dos vidros.
Ela estava fora do dia, mas o contemplava com um misto de respeito, uma espécie de alegria contida e certa raiva. Dali, do lado seguro, observava algumas poucas vidas. Nada fazia diferença: as vidas brilhavam mais além e nada parecia ter o poder de faze-las ultrapassar os vidros.
Estava imune às iluminações todas.
Um ar quente, pesado, envolvia tudo. Impregnava todas as cores, todos os sons.
Mais ao longe, via, os vapores criavam ondulações na paisagem. O chão tremia, os carros estacionados na calçada íngreme tremiam e aqueles tremores eram de loucura, ela sabia, porque o calor criava novas imagens, apenas para os olhares que carregavam a insanidade precisa daquela manhã.
Estava só. Sentada no chão de tacos gastos, fazia com os dedos desenhos distraídos na poeira. As costas retas apoiadas na parede, as pernas estendidas, os pés descalços. Os cabelos soltos e negros contrastavam com o azul vivo do vestido florido, como uma vegetação estranha avançando sobre um lago límpido tornando suas águas perigosas.
Observava com seus olhos distantes a parte do mundo que era emoldurada pela grande porta e pensava nos velhos encantamentos que aprendera há muito tempo.
A noite chegaria. Ela esperava.
Não havia vento naquela manhã, as folhas estavam todas quietas, como se também esperassem algo. Uma palavra sua, talvez.
Estava só e suas mãos, vazias.
Lembrou-se de quando era ainda uma criança, quando permutava por entre os dias leves, com sóis ou com águas, correndo por entre folhas ou flores ou pés de pêssegos carregados. De quando trocava de lugar manhãs e noites, com a irresponsabilidade dos recém-iniciados, pequenos feiticeiros criando estrelas, respirando todas as luzes. De quando ainda escondia-se atrás da velhas casa, tão muda agora, rindo tanto, sentindo tanto, pulsando tanto quanto um pequeno coração que dava vida às ruas, às cidades, aos mundos todos.
Estava só agora, entretanto. E esperava a noite que esconderia as marcas profundas em seu rosto. Então, sairia e seria bela, flutuando pelos sonhos daqueles que a esperavam, noite após noite, ansiando por algo que não fosse áspero, algo que não fosse brusco.
Esperavam pelo que apenas ela tinha a oferecer ao mundo quando fosse novamente a menina, por entre os pés de pêssego.